segunda-feira, 14 de maio de 2012

Suicídio espiritual.

Seu corpo balançava em sintonia com o som distante tocado pela lira, seus olhos piscavam juntamente com a pausa poética da voz suave que ele ignorava. Os sons de suas palavras tornavam-se mudas em seus pensamentos absortos e a felicidade ainda resplandecia. Era como uma cadeia alimentar, animais sobreviviam a isso; John sobrevivia ao som suave da pequena lira soando distante, tão longe de seus ouvidos. A música o seguia, não importava.
Os dias se passavam e a canção soltava-se aos ouvidos, estancavam-se à eles. John enlouquecia de certa forma tentadora e seus sonhos não eram mais sonhos. A depressão lhe invadia a face. A música se tornava trilha sonora de filmes de terror, de cenas de amor e de pesadelos reais. Ideias subliminares invadiam a canção antes suave. Ele lutava com o sofrimento ao mesmo tempo em que matava a si próprio, não sentia dores de um corpo solene. Ele era apenas uma borboleta querendo voar em um mundo musical; sem vida espiritual.
O sangue invadia sua face celestial e seus olhos azuis cobalto não realçam mais o calor de sua pele gélida, pálida. O vermelho tornou-se eterno e seus pés curvos tornaram-se essenciais. O prédio de onze andares o ajudava – pulou. Agora era uma borboleta, talvez uma águia pronta a debruçar-se sobre um animal indefeso. Isso tudo não passa apenas de uma plena cadeia alimentar, onde apenas o forte sobrevive. Alimente-me.
"Desisto do mundo, desisto das palavras e desisto do amor. Aquele que me partiu a carne em pedaços, retirando o único órgão que ainda batia no meu eu e podia ter algo a trazer. A música pode ser a alma para trazer tudo à vida. Trago-te em um papel, o das listas dos próximos mortos que lhe trago – você é a primeira da lista. Eu apenas desisto da vida, em todas as letras que podem sair de meus lábios agora, eu apenas digo um adeus rouco e sem voz interna. Desisto."
Incognição.

Ódio.

O rancor invadia as luzes petrificadas de um ódio restrito ecoando pelo quarto vazio; sem vida. As lágrimas tomavam conta do eterno choro preso em sua tez amarrada à dor, ao sofrimento de um odiar eterno. Em sua mente, o latejar de uma crise estupefata do desejo inevitável, a morte de um corpo imóvel jogado ao carvão de uma vida sem chaminé. Alimentar-se das pequenas coisas lhe parecia uma ótima ideia, igual o sussurrar de uma dor alinhada e o paradoxo da raiva esvaziava-se entre os lençóis curtos à medida que se tratava de seus pés nuns. Tudo lhe mostrava a cólera; um sentimento de ira, de remoção.
Seres compostos da rivalidade de um mundo sem senso, de uma vida sem vida, do amor sem o perdão. A falta invadia suas tripas na metida que seu coração batia fracamente sobre a vida destroçada. O pequeno inferno imposto sobre você mesmo, sobre o amor empilhado aos corpos nuns em um cadáver decepado; o sangue composto das substâncias que almeja. O arfar da agonia invadia sobre o ódio do rancor e os cachos bronzeados contornavam-se sobre a tez da menina que se sentava ao canto suave de vidas impostas e chorava agoniada. Uma palavra permanecia sob sua mente vazia: Rancor. Chorar não fazia bem o quanto diziam e seu coração estava apertado entre o vão de pequenos órgãos massacrados.
O ódio lhe pertencia, assim como as teses lhe satisfaziam e a falsidade lhe importava.

Incognição.

Classicismo.


Todos estavam enfileirados sobre o tapete felpudo que ligava a escada até a extremidade mais curta da grande porta do museu. Viam-se diferentes expressões em cada face dos alunos do colégio central: entediadas, animadas e neutras. Os professores contavam cada cabeça, como se fossem um grande número de gado precioso. Apenas uma pessoa de aparência meiga, delicada, destacava-se entre todas elas; a menina com um olhar tímido e encolhida ao canto do ônibus – sendo a última à deixar o ônibus. Solitária, parecendo pronta a desmoronar no primeiro toque de outro alguém. Estava corada, demonstrando ainda mais o empreendimento.

— Louis, venha, eles vão abrir os portões do museu — Um menino rechonchudo com cachos de anjo apareceu trotando, em direção à menina loira, e pingando suor sobre as grandes bolas negras que havia aos lados de seu grande nariz de porco. Desmoronou-se no chão enquanto pisava em seu cadarço desamarrado, levantando-se atordoado com o baque que tremera o ônibus chamando atenção de todos ao redor e voltando-se para Louis os amarrar sobre a cadeira do ônibus — Arg... Cadarço cretino.
— Você tem que se acalmar, Jack. Não iremos perder nada, o teatro atrás só abrirá mais tarde.
— Não é isso, quero ver as pinturas e os textos trancados entre as pilastras de vidro. — Arfou. — E você sabe, preciso saber onde minhas obras ficarão um dia — Louis soltou uma risada abafada — Não ria, eu lutarei por isso.
Jack saiu correndo em direção à grande porta de madeira que se abria, caindo novamente sobre o tapete vinho tinto. Atrapalhado. Louis ainda possuía seu andar calmo e encarava o chão, rindo um pouco do jeito que seu amigo estava desengonçado e animado com aquele passeio. Ela gostava de vê-lo sorrir. Seus cabelos faziam cachos nas pontas com a brisa fina que batia sobre sua face, enquanto o menino a gritava e acenava insistentes vezes com o intuito dela vê-lo entrando ao museu.
Adentrando o mesmo ela abriu um belo sorriso, enquanto observava o teto e as paredes do local decoradas com pinturas – que mais se pareciam rupestres. Uma música erudita ocidental invadia, suavemente, os ouvidos de Louis, fazendo-a flutuar sobre suas sapatilhas azuladas que realçavam a cor de seus olhos cor de mar – um belo par para os de Jack. Suas mãos foram agarradas e puxadas para outra sessão enquanto seus olhos fechados demonstravam a satisfação do cheiro de ervas que invadia o local.

— É aqui que ela vai ficar! — Seus pés saltaram do chão ao ver Jack pegando uma cola e seu texto com letras garranchadas e ilegíveis.
— O que está fazendo, Jack?
— Estou deixando minha marca neste museu, eu te disse que ele iria ficar aqui. — Respondeu enquanto já o colava, em cima de outro que provavelmente seria de Camões, sobre a pilastra de vidro.
— Você não pode fazer isso. — Louis soltou um breve grito agudo que fez com que Jack tapasse os ouvidos.
— Cuidado com seus gritos. — Bufou. — E por que não posso?
A música cessara e o museu antes clássico tornou-se um inferno para Louis. O teatro falhara, mesmo com a peça na qual ela sempre gostou da época do Neoclassicismo, e o museu que valorizava as antiguidades clássicas não bastava. Seu amigo soluçava e seus sonhos foram jogados no lixo por uma ambição repentina. Ela não queria estar ali. O clássico se tornou vital e as artes que sempre quis conhecer só iluminavam o grande museu artístico, que renascia cada obra dos grandes fiéis do classicismo. Sabia ela o significado de tudo antes de questionar Jack?
Uma última estrela brilhou no céu violeta.
Não, ela não sabia de nada. Não sabia como era ver novamente um sorriso vindo de Jack, mesmo que ele estivesse certo. Não via emoção em seu olhar e não viu naquele momento que mesmo que ele estivesse fazendo uma coisa ilegal, não poderia questioná-lo por velhas artes clássicas. Ele era seu amigo, aquele que possuía o mais lindo sorriso e retirava todos os sentidos de Louis. Talvez aquele fosse o único, o mais precioso de todos os diamantes, quem sabe.
Incognição.
"A gente podia ter tido mais calma. Podíamos ter ido mais devagar. Deveríamos ter segurado a onda e medido as palavras. A gente tinha que ter tentado controlar a raiva para não magoar o outro. Nossos passos tinham que ter sido exatos, nossos tropeços eram pra significar NADA perto daquilo que estava começando a ser algo especial e único. Erramos feio. Falamos demais e agimos de menos. Magoamos demais e amamos de menos. Gritamos demais e fomos sensíveis de menos. Lutamos demais e nos entregamos de menos. Relutamos e tivemos medo demais e nos apaixonamos de menos. Erramos feio. Tudo que não era pra ser feito fizemos em dobro. E o que era pra ser…bem, ficamos no saldo devedor, no vermelho. A gente podia ter tido uma história linda. Mágica, pura, sem cobranças, cheia de respeito, livre, saudável e deliciosa como o barulho da chuva. Era pra ter sido amor."
Clarissa Corrêa.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Não goste do amor.

Não goste do amor. Goste de quem te ame, alguém que te espere, alguém que te compreenda mesmo nos momentos de loucura, de alguém que te ajude, que te guie, que seja seu apoio, tua esperança, teu tudo. Não goste do amor, goste de alguém que não te traia, que seja fiel, que sonhe contigo na tua delicadeza, no teu espirito e não no seu corpo, nem em teus bens. Não goste do amor... Goste de alguém que te espere até o final, de alguém que sofra junto com você, que ria junto de ti e enxugue suas lágrimas, que te abrigues quando necessário, que fique feliz com suas alegrias e que te dê forças depois de um fracasso. Não goste do amor. Goste de alguém que volte pra conversar com você depois das brigas, depois do desencontro. De alguém que seja companheiro, que respeite tuas fantasias e tuas ilusões. Goste de alguém que te ame. Não goste do amor... Goste de alguém que sinta o mesmo sentimento por você e que caminhe junto com você.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. (…) Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
Caio Fernando Abreu.

sábado, 21 de janeiro de 2012

(Conto) O dia em que os mortos podem retornar.

A lua estampava o imenso céu estrelado, tomando espaço para o brilho mais intenso do mundo. A noite em que os seres mortos poderiam renascer e, talvez, pudessem brilhar como a estrela mais estridente que pudesse existir. 
Nessa noite, eles todos existiam em corpo e alma. 
Doces classificavam as casas e as criaturas brilhavam durante a noite transparente. O mundo transformava-se em um imenso apontador azul, salpicado por terrenos esverdeados. Terras frágeis. Os ratos corriam para suas tocas, em busca da comida escondida e térrea, distante da vizinhança assombrada. 
Nessa época, as flores tornavam-se laranjas contrapondo as cores do outono e revertendo as abóboras mascaradas. As casas investiam em detalhes luxuosos e assustadores, junto com as velas, que iluminavam as calçadas. Os postes apagados e as moscas sem lugar para proliferar-se. Era demais uma noite como aquelas.
Bruxas disfarçavam-se de estrela-cadente, enquanto voavam pelo imenso céu, dando gargalhadas e jogando substâncias de suas iguarias. Caldeirões abriam espaço dentre todas as muambas expostas nas cabanas de palha, reforçadas por pilhares. 
Aquela não era uma noite qualquer, naquele dia, as bruxas saiam de suas tocas. Seus dentes podres e suas verrugas na ponta do nariz reto e comprido podiam brilhar na luz do luar. Eram bruxas sem coração e risadas em um pulmão, seco e vazio. 
Leves respingos afundavam sobre as vestes de Cassandra, o chapéu pontudo cobria-lhe metade da face e suas botas de fivela roxa afundava-se na lama – que grudara-se no tecido, dificultando a corrida pela ravina molhada. A bruma subia-se dentre a neblina e a brisa gélida invadia a face nua da moça incomum.
Risadas a seguiam, juntamente com passos pesados e faces destroçadas. Os braços cegueiros, desprezos do tronco, balançavam em constante sintonia com a corrida arfante.
A cabeça de Cassandra rodava e seus pés calosos insistiam em derramar-se naquela lama e desfrutar do pecado, ser queimada viva diante de uma fuga. Seus pés sobrevoavam o local, dito assim que sua leveza depois de adquirir a magia negra iria tornar-se leve, assim como seu corpo magricelo – inferior ao peso de uma bíblia gigante. 
Um corvo negro tomou conta do local embaçado, pousando suas pequenas garras ao tronco musgo de uma árvore centenária à frente. Suas asas batiam três vezes mais do que as passadas largas da mulher albina, a plumagem descia sorrateira sob as mesmas penas que a seguiam.
As lágrimas da deusa tocavam os lábios carnudos e secos de Cassandra. Suas vestes úmidas, seus olhos cegos e seus pés escorregadios faziam-na desistir de sua vida. Seus ouvidos clamavam pelo sabor da chama tocando a tez da ruiva. As cabeças contorcendo-se e um pescoço quebrado. Era um conjunto a ser traçado.
Os cachos bronzeados pararam de tremer e a brisa cessou. A neblina ainda inundava o local, mas, por instinto, a pequena mulher enfiou-se por detrás da árvore centenária. Abaixo do mundo; abaixo do santo corvo destroçado. 
Ela escondia-se do universo, trazendo seu livro de magia abaixo dos braços. 
Os passos pesados e o aroma da chama precipitavam-se ao passar ao lado da mulher. Sua respiração diminuiu, obrigava-se a calar-se dentro do abismo da morte serena. Oscilava ao ver a mesma passar ao seu redor. Puxou o pouco de pele de sapo que lhe restou dentro do bolso das vestes e mastigou, parecia que aquilo era apenas mais um doce no mundo real – aquele em que humanos ainda podiam existir.
Os passos cessaram e a voz gritante calou-se em vão, o silencio tomava conta do local e, assim, Cassandra poderia deliciar-se do descanso da árvore aposentada. Mas, não. Apoiou-se no tronco em que o corvo salpicava e ergueu os braços, revirando as imensas páginas do livro de veludo – descrito por páginas soltas e suspiros estranhos.
— Mostre-me a resposta. Diga-me o que é o mundo, trago-lhe lembranças de uma vida angustiada. Sigo-te pela eternidade, caçai-me com louvor e exultai-me claramente. — Os lábios de Cassandra apenas moviam-se, pois o som pouco se ouvia. Era um sussurro mudo, surdo. Após as palavras, o livro revirou-se em páginas e uma chuva das mesmas reinou-se no local, esparramou-se o ventre do livro ao chão enlameado. Porém, as folhas velhas continuavam as mesmas, sem sinais de locomoção. 
O livro parou de sussurrar e pousou uma das páginas nas mãos de Cassandra. Os dedos longos percorriam as palavras, como algo insistente, e as órbitas saltavam de seus olhos. Estava cautelosa e murmurava breves exclamações entre uma pausa e outra, dentre os parágrafos.
— “Execute os vivos; sobrevivam os mortos.” Um bom modo de deixar-me a resposta. — Zombou. Virando o livro de cabeça para baixo e sacudindo-o, parecia que havia um humano dentro do mesmo, aquele que poderia gritar e afundar sobre os tímpanos. A mulher revirou os olhos e desvirou o livro, acalmando-o. — Poderia, pelo menos, trazer-me a mensagem de como trazer uma foice em minhas mãos, assim seria um modo fácil de eliminá-los, não concorda? — Cassandra assoprou a página e o pouco de fuligem ainda inundava a capa. Ela não lia, apenas exaltava, muda, as coisas que lhe percorriam em mente. O livro tossiu.
— Você pediu uma resposta e eu lhe trouxe, minha senhora. Trago-lhe a melhor hipótese dentre a inscrição dos executados em meu mundo. Eliminai os que a tratam mal e traga-me os eternos palmos destroçados de um zumbi caricaturista. — Zombou. — Eu lhe dei a beleza de uma humana, fazei de mim um só e aceite minhas opções, sem pigarrear. 
— Farei o que pede, pois estou em apuros e a procura do mal. Não desejo as verrugas de volta à minha face. — No mesmo instante, Cassandra sentou-se ao chão e iniciou o processo que o livro exaltava.
A preparação era longa, mas podia-se dizer que era opção forte para um iniciante qualquer, não que Cassandra fosse iniciante neste mundo. Apenas podia-se dizer que o processo era de fácil acesso, o que complementava o bom e trazia-lhe o mal. 
Ao longe, podia-se ver a fumaça dentre as árvores distantes. A fogueira havia sido montada e o cheiro decomposto já invadia a narina da bruxa. Enquanto a chama queimava e os gritos oriundos eram ouvidos, Cassandra pode entender o significado de renascer os mortos. Podia-se dizer que aquele era um dos sonhos mais malévolos da mente perversa da ruiva. 
Tudo estava pronto, exceto por uma pequena amostra de carne humana ou sangue de um animal. Olhava ao redor e pouco se via o oriente e o cemitério encontrava-se infestado. Após tudo, pode-se lembrar. Cassandra nomeava-se um animal. Fincou os dentes pálidos na própria tez e arrancou-lhe um pedaço da mesma. Chupou seu sangue por um tempo e tampou a pele ao pequeno caldeirão borbulhante. O sangue pingava sem a noção do tempo e a pele soltava-se com o vapor. A fumaça aumentou e um estouro ergueu-se do chão. Estava pronto.
Um último grito sorrateiro foi solto dos galhos, o corvo saltou-se da árvore nu e morto. Suas penas brilhavam sobre o caldeirão e um sorriso foi solto aos lábios de Cassandra. A brisa dançou com seu cabelo e pode-se ouvir os sussurros de salvação soltos pelas bruxas em Salém. 
Cheiro de terra úmida e semi cavada invadia sua narina frágil aos sabores e ao aroma. Cravou os lábios em sua pele, ainda pingando, e explorou os locais com sua língua áspera. Sentia-se masoquista em pensamento, mas aquele era um motivo para estar feliz. Talvez o mundo morresse e os mutantes reinassem.


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A preparação era longa, vivia-se de pão e água. Inchava-se por dentro e encontrava uma remoção eterna em seu coração de vidro, que ainda podia bater com total sintonia ao amar de um campeão. Seus olhos arroxeados, marcados pelo sofrimento da perda, ainda podiam reinar durante o tempo mal escrito. A lembrança lhe socava a cabeça, trazendo o passado de volta ao presente. 
Sentava-se na calçada e admirava o tempo passar. Talvez o tempo pudesse voar de seu relógio e a noite crescer em vão, mas sabia-se que nada era relativo ao que sentia. A bola poderia bater em sua cabeça diversas vezes, os carros poderiam buzinar e, até mesmo, os colegas poderiam pular em sua frente, zoando-a ou chamar sua atenção com algo banal, mas ela não poderia mover-se. Estava em um mundo distante e vazio. Gélido. Seus pulmões ardiam e o frio queimava-lhe a tez. Ela pensava nas desgraças e podia imaginar o futuro. 
Uma estranha ainda mais estranha, absorvida pelo passado e presa dentre o medo. Agarrava-se à suas pernas, ciente de que em pensamento partia ao distante. Dispersa. As palavras não podiam tirá-la do transe. 
Ninguém poderia sentir o que ela sentia, era impossível. Apenas quem perdeu alguém poderia ter o sentimento de aperto, no qual a corroia por dentro.
O abraço rompeu-se, as palavras confortantes calaram-se e as fotos tornaram-se transparentes, depois de um ano, o mundo desabou e as datas especiais criaram vínculo com as emoções. As folhas do outono trocaram de face, renovando suas forças e crescendo com o caule do sofrer.
O mundo calou-se e os eixos romperam-se. Uma criança com a dor do perder, era monótono a vida entre uma cama e uma calçada cheia de pedregulhos do passado.
— Traga-me o guerreiro. Não me importo que ele possua cicatrizes, pois deles eu posso servir-me e sarar-me. Apenas peço que o traga em vida, pois do resto eu me satisfaço sozinha. Tenho o poder da cura, mas não possuo o poder da vida, peço que tudo se desfaça em meus pés e ele retorne ao presente. — Falava mansa e suas órbitas estavam em chama, relatavam o momento em que tudo era o nada e que ele podia satisfazê-la. A dor a possuía, mas a dor do ódio. — Levem todos e deixe-o. 
Um silêncio tomou conta do local, apenas os murmúrios podiam ser ouvidos. Até então. Um baque tomou a rua, agora deserta, e uma luz violeta brilhou por detrás do arbusto. Cassandra acordou de seus sonhos e desvirou os olhos, trazendo as órbitas negras de volta ao presente. Apoiou-se nas pedras e levantou-se, ainda encarando o vazio, a luz brilhante, a única que ainda podia iluminar sua visão dentre o breu que se erguia ao redor.
Os passos errantes eram seguidos, um atrás do outro. Sua visão tremia, mas um sinal poderia ergue-se. E se fosse ele? Poderia sorrir?
Adotou a coragem e continuou em passos mais leves, mas ainda errantes. Seria uma briga com a vida, algo oposto ao presente. Preferia seguir em frente ao voltar aos seus passos calados e, agora, distantes de novo. A cada passo podia-se ver as gotículas de preocupação brotarem em sua testa, e sempre que andava cautelosa a luz irradiava ao local ainda mais. Apenas mais uns passos e estaria ali, encarando o ser que poderia aguardá-la e arrancar sua pele por inteira, deixando seus órgãos nus. 
Uma explosão ergueu-se e tudo se apagou. Apenas um livro devorou-a por inteira, voltando páginas e mais páginas, demonstrando o passado e nunca mais a deixando voltar ao futuro.
Queria crescer, mas era impossível se dissessem que nessas décadas, de hoje em dia, ela poderia ter mais de mil anos, enquanto no futuro ela tinha apenas onze anos. Era estranho, assim como ela era. Um pedido distante poderia transformá-la em uma trajetória errante do mundo. Aquela em que, na Idade Média, era julgada pelo mundo e queimada no fogo. 
Ela teve seu pai de volta, um morto-vivo. Porém, não se reencontraram. Ele ficou no futuro e ela foi ao passado, brincar de bruxa sedentária. Horrorosa e com todos os seus desejos em um livro encantado – o mesmo que a trouxe ao passado.
A lua já estava a iluminar o céu e uma das estrelas pôde brilhar ainda mais do que antes, o dia trinta e um de outubro foi marcado por uma pata de tigre, mansa. Pintada com a mancha e trazida ao passado. As lágrimas tiraram a sede que lhe servia ao pai. Podia sorrir, por enquanto.


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— Dizem que o mundo, ao retornar ao passado, tornava-se melhor e mais bonito. Porém, não vejo algo bonito neste lugar distante. É algo vazio. Apenas meu coração irritado ainda serve-me de consolo, a única coisa boa que ainda pertence a esse mundo. O órgão ao qual foi costurando, com agulha, enquanto eu ainda podia chorar. Estou seca em lágrimas e o ódio penetra-me. A magia absorveu-me e a cura agora me serve ao mal. Um demônio em corpo humano, destacado pela vingança e pelo ódio. A vida aqui é um abismo, no qual só eu posso sobreviver. Tenho a chave do mundo e, assim que eu voltar, trarei a morte e arcaram com as consequências de meu pai. Aquele que vocês mataram, humanos ridículos. Tornar-me-ei a torturá-los, pois terei o coração que hoje lhes servem. A vida não penetrará mais em você. — Murmurava quieta, enquanto torcia os punhos, pronta a apunhalar alguém e socar à morte. Sentada ao topo de uma montanha, encarando as cenas do fogo ardente.
O mundo ainda não acreditava em bruxas quando as frases foram ditas, as vidas foram ameaçadas por magia, mas nenhum ser poderia crer em um nós. Um grupo de cidadãs malévolas, criticas da névoa que absorvem os castelos do rei e sugam sua vida. 
Algumas décadas após vários testamentos e casos elevados de vítimas, casos sobrenaturais, não diriam nada se uma das humanas não tivessem pigarreado a palavra “bruxa” após um atentado. Talvez aquilo fosse apenas uma ofensa sem sentido, mas seria bom se a mulher realmente não fosse uma bruxa. Ela ficou irada e detonou a cidade por completo, desde então, todas as cidades vizinhas temam na busca por sinais das mesmas. Crêem que as mesmas fugiram para essas cidades, após várias ameaças e mortes em meio à praça pública. Ardendo ao fogo. Desde então, todos adquiriram essas leis infiéis.
Um tempo se passou e já foi possível ouvir os passos pesados e o tronco destrancar as fechaduras. Cassandra parou de rir, mas continuou sentada, olhando perplexa para a porta, com os punhos cruzados e unidos, balançando os dedos longos e brincando com as unhas vermelhas.
Um, dois e três. Quatro baques. Cinco, seis, sete... As trancas desfaziam-se. Oito... Quase lá. Nove... Pouco. Dez, um estrondo.
Cassandra pulou por cima de sua vassoura e deu um adeus debochado, seus olhos pregaram o chão e denunciavam sua distinção.
Ignorou todos os galhos acima e deliciou-se ao bater em um deles, chacoalhando os cabelos e quase derrubando-se da vassoura. A lua salpicava no imenso manto azul-escuro e logo ela pode saltar sobre o chão e começar a correr com suas próprias pernas.
Eu sabia seu futuro.
Ela comandará o mundo das bruxas e não existirá mais humanos. Será uma ressurreição da carne podre, amarga. Tudo será diferente e o mundo será o mesmo cinza de sempre, preenchido por pequenos rabiscos coloridos, impressos em uma folha de jornal.
Afinal, um gato sábio estilhaçado em uma janela e sobrevivendo dos mortos, enquanto ainda sabia do seu passado, é algo muito incomum. Seria impossível não saber o que lhe aguardava.
Lembrando que depois de todos os acontecimentos fiéis foram tirados ao dia trinta e um de outubro de todos os anos, trazendo à tona tudo que deveria ser traçado. Sabendo o destino de todos. E ai? Doces ou travessuras?
Meus olhos reviraram-se, deixando apenas um buraco branco e profundo. Era a noite dos mortos-vivos e Cassandra afagava meus pelos negros, olhávamos pela janela e nos deliciávamos com as cenas retóricas de zumbis, enquanto ainda elaborávamos planos para cruzar com o livro de feitiços. Quem será o próximo a presentear?
Incognição.